16 Set Projeto de lei pretende alterar a LGPD e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Por Fabio Vieira e Gabriela Tchalian
Em 8.3.2022, os deputados Thiago Mitraud e Adriana Ventura, ambos do Partido Novo, apresentaram na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 454/2022 (“PL nº 454/2022”), que aguarda apreciação pelo Senado Federal.
O PL nº 454/2022 pretende alterar a Lei nº 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases da Educação”) e a Lei nº 13.709/2018 (“Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD”).
No que se refere à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o PL nº 454/2022 pretende alterar o artigo 5º, que estabelece a educação básica obrigatória como direito público subjetivo exigível, de modo a incluir os parágrafos 6º e 7º, com o texto a seguir reproduzido:
“§6º O Poder Público é autorizado a compartilhar e publicizar os dados e microdados brutos coletados no recenseamento escolar de que trata o inc. I do §1º deste dispositivo desde que anonimizados ou pseudonimizados.
§7º O Poder Público é autorizado a compartilhar e publicizar os dados e microdados brutos coletados por meio do Exame Nacional do Ensino Médio, inclusive segmentado por instituição de ensino, desde que anonimizados ou pseudonimizados.”
Já para a LGPD, o PL nº 454/2022 busca a alteração do artigo 14, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, para inclusão dos parágrafos 7º e 8º.
Essa alteração estabelece que as regras de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes não se aplicariam aos casos de compartilhamento de dados pessoais coletados no censo escolar e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (“Enem”), conforme segue:
“§7º O compartilhamento dos dados pessoais coletados no censo escolar, de que trata o §3º do art. 208 da Constituição Federal e o inc. I do §1º do art. 5º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, mesmo que de crianças e adolescentes, independe da observância das exigências do §§1º a 6º.
§8º O compartilhamento dos dados pessoais coletados por meio do Exame Nacional do Ensino Médio, mesmo que de crianças e adolescentes, independe da observância das exigências do §§1º a 6º.”
Visa ainda o referido PL a alteração do artigo 26 da LGPD, que trata do uso compartilhado de dados pessoais pelo Poder Público, de forma a permitir o compartilhamento e publicização de dados e microdados brutos coletados no recenseamento escolar e no Enem se anonimizados ou pseudonimizados (pela inclusão dos parágrafos 3º e 4º).
“§3º O Poder Público é autorizado a compartilhar e publicizar os dados e microdados brutos coletados no recenseamento escolar de que trata o §3º do art. 208 da Constituição Federal e o inc. I do §1º do art. 5º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, desde que anonimizados ou pseudonimizados.
§4º O Poder Público é autorizado a compartilhar e publicizar os dados e microdados brutos coletados por meio do Exame Nacional do Ensino Médio, inclusive segmentado por instituição de ensino, desde que anonimizados ou pseudonimizados.”
Cabe lembrar, contudo, que a LGPD expressamente excluiu de seu escopo os dados anonimizados. Assim, ainda que o PL nº 454/2022 fosse integralmente rejeitado, o aproveitamento de dados anonimizados pelo Poder Público já é possível. Sob outro vértice, inserir a possibilidade de divulgar dados ou microdados de crianças e adolescentes de forma pseudonimizada, a depender do contexto, pode representar um risco à privacidade destas pessoas.
Na Justificação do PL nº 454/2022, os deputados narraram o episódio em que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (“Inep”) publicou os dados e microdados do Censo Escolar da Educação Básica e do Enem com atraso, de forma reduzida e indisponibilizando as séries históricas alegando adequação à LGPD.
Argumentou-se que a conduta do Inep impediu a compreensão do cenário nacional de educação, da evolução da aprendizagem e das condições de educação do Brasil. Isso porque os dados disponibilizados não permitiram a segmentação por escola, ou seja, a identificação do desempenho individual dos estudantes por instituição de ensino.
Os parlamentares ainda frisaram que o Inep teve 2 (dois) anos para se adequar à LGPD, de forma que a observância da norma não poderia ser utilizada como desculpa para o atraso e a falta de transparência das informações públicas.
Por fim, ressaltaram a importância dos dados para políticas governamentais respaldadas pela Constituição Federal, uma das bases legais para o tratamento de dados pessoais prevista no artigo 7º, III, da LGPD.
Em 16.3.2022, os próprios autores do PL nº 454/2022 apresentaram requerimento de urgência para apreciação, levando o projeto às Comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, Educação e Constituição e Justiça e Cidadania para apreciação conclusiva. O requerimento de urgência, porém, só foi aprovado em 31.3.2022.
Em 5.4.2022, foi designado como relator do PL nº 454/2022 o deputado Sr. Felipe Rigoni. O relator emitiu parecer pela aprovação do PL nº 454/2022 na forma de seu substitutivo.
O substitutivo ao PL nº 454/2022 excluiu suas alterações à LGPD (o que nos pareceu acertado e em consonância com as demais legislações sobre proteção de dados, como União Europeia e Canadá), mas ampliou o rol de ajustes à Lei de Diretrizes e Bases da Educação para maior especificação dos dados envolvidos e condições a serem observadas.
Ao substitutivo, foram apresentadas 3 (três) emendas, tendo sido aprovadas apenas as de número 2 e 3.
Em 20.4.2022, o PL nº 454/2022 foi remetido ao Senado Federal. Clique aqui para acessar o texto do substitutivo remetido.
A elaboração do PL nº 454/2022 não foi a única consequência da conduta do Inep. Em 17.5.2022, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”) emitiu a Nota Técnica nº 46/2022/CGF/ANPD (“Nota Técnica”) para apreciar a adequação dos microdados disponibilizados pelo Inep no atendimento à LGPD.
De acordo com a ANPD, a Nota Técnica foi elaborada em função da suspensão da divulgação dos microdados pelo Inep e de uma nota de esclarecimento emitida pela entidade, na qual alegou que:
(i) a divulgação dos microdados no portal seria realizada conforme a LGPD;
(ii) a divulgação seria adequada a critérios objetivos que reduzissem os riscos de identificação de titulares dos dados;
(iii) sua postura foi baseada em estudo realizado em conjunto com a Universidade Federal de Minas Gerais, que constatou riscos à privacidade, incluindo a reidentificação e inferência de atributos sensíveis, nas técnicas de divulgação dos microdados até então utilizadas;
(iv) não haveria restrição para pesquisas e estudos educacionais, já que outros meios de acesso à informação não divulgada pelo Inep seguiriam existindo; e
(v) o Inep pretendia estabelecer parcerias com instituições federais de educação superior para expandir sua capacidade de adequadamente disponibilizar dados.
A ANPD optou por repartir sua análise em 3 (três) tópicos centrais.
Primeiramente, deliberou sobre sua própria competência para participar da discussão. Nessa seção, concluiu que detinha competência para se manifestar acerca de dúvidas sobre proteção de dados e interpretação da LGPD, conforme o artigo 55-J, I, IV, VI, XIV e XX, da própria norma.
A próxima seção se debruçou sobre a possibilidade de o Inep divulgar os microdados dos censos educacionais. Aqui, ponderou-se ser um debate sobre o direito à privacidade e proteção de dados em oposição ao direito à informação quanto às atividades do Poder Público.
Recorde-se que, para a Administração Pública, a regra geral estabelecida na Lei de Acesso à Informação é a publicidade dos atos.
Entendeu a ANPD que, apesar do dever de publicidade, o Inep não poderia se escusar de cumprir com a LGPD, devendo avaliar os riscos e impactos, bem como as possíveis medidas para mitigá-los. Também, como órgão do Poder Público, deveria observar o Guia Orientativo sobre o Tratamento de Dados pelo Setor Público.
Quanto à base legal de tratamento de dados aplicável à divulgação dos microdados, a ANPD ponderou que o enquadramento correto seria a hipótese de realização de estudos por órgãos de pesquisa, prevista no artigo 7º, IV, da LGPD, não o consentimento.
Finalmente, a ANPD deliberou sobre a anonimização, divulgação dos dados pessoais e relatório de impacto.
Esclareceu-se que, pela LGPD, dados anonimizados não são dados pessoais. Contudo, aceita-se que pode existir risco de reidentificação. Para o Poder Público, existe um limite aceitável de risco de reidentificação, desde que o tratamento dos dados anonimizados seja relevante ao interesse público.
Nesse sentido, o Inep poderia se valer de outras medidas de segurança informacional e proteção de dados, tanto técnicas quanto administrativas.
Retomou-se aqui a importância de avaliar amplamente os riscos e medidas de segurança apropriadas para mitigá-los. Contudo, a ANPD deu um passo além nessa seção: exigiu a elaboração de Relatório de Impacto à Proteção de Dados (“RIPD”), sobre o qual dispõem os artigos 4º, §3º; 5º, XVII; 32; e 38 da LGPD.
Em suma, a Nota Técnica da ANPD concluiu que (i) o tratamento de microdados pelo Inep é legítimo, (ii) os princípios da LGPD devem ser observados, (iii) outras medidas além da anonimização podem e devem ser adotadas, (iv) o Inep deve elaborar o RIPD.
Interessante notar que nem a Nota Técnica da ANPD e nem o PL nº 454/2022 realizaram uma abordagem acerca da definição ao termo “microdados”.
Nos parece que o Inep e os criadores do PL nº 454/2022 possuem rasos conhecimentos – para não dizer que desconhecem – o conteúdo da LGPD e, ao invés de estimular uma melhor avaliação sobre a possibilidade de divulgação de microdados (ou dados pessoais) e quais medidas deveriam ser adotadas na proteção dos direitos fundamentais, notadamente de crianças e adolescentes, acabaram optando por tentar criar mais uma aberração legislativa.
Clique aqui para acessar a Nota Técnica.
Este material tem caráter meramente informativo e não deve ser utilizado isoladamente para a tomada de decisões. Aconselhamento legal específico poderá ser prestado por um dos nossos advogados. Direitos autorais são reservados ao Kestener & Vieira Advogados.
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